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Carta a um jovem esquizoanalista

  • Foto do escritor: Argus Setembrino
    Argus Setembrino
  • 24 de out. de 2020
  • 4 min de leitura

Heitor,


Comentei na (pre)carta ao Ricardo algo que conversamos ontem. Disse a ele que a vontade de abrigá-lo (ao Ricardo) no mesmo signo que o meu me faz dizer por aí que ele é esquizoanalista e esquizodramatista. Foto sem pose, porque ele não se intitula assim, embora seja um leitor dos franceses; mas a lente é minha. Talvez seja uma tentativa debalde de captura de alguns aspectos: porque o trabalho dele é fundamentalmente com criação, ato de criação; porque a ética e poética dele é fundamentalmente anticapitalista e anarquista. Quando você me pergunta o que espero de um esquizoanalista, é isso. Porque daí é certo de podermos ter um entendimento.


Mas essa espera está mais perto da esperança do que da idealização. Em todo caso, não é boa. Talvez devesse me deixar capturar pelo que o Ricardo disse a partir de Sodré, que a “ética é um posicionamento fatal diante do outro” e tudo pode acontecer; é questão de vida e morte. Jogar a partir do que você e seu entorno trazem concretamente, em vez de te colocar em algum baluarte – malgrado os limites e interceptações das codificações incomensuráveis da máquina que nos medeia. Talvez por aí tenhamos uma dupla-captura; menos sedução e condução e mais transdução… e isso é menos da ordem de uma idealização do que de uma vontade. É por aí, pela dupla-captura/transdução, que antevejo uma horizontalidade possível.


Os antropólogos é que são especialistas “do outro”, mas talvez essa seja esse conceito-percepção que transmute a espera em jogo; a sedução/condução em transdução, tanto pra você quanto pra mim. Posso devir-heitor? Você pode devir-argus? Há desejo e capacidade para isso? Há vulnerabilidade, disponibilidade, minoridade? Em nosso processo, você tem um Eu aparentemente seguro e bem defendido e escolhe os segredos para devir [1], que eu posso ter tratado com alguma falta de respeito… [2] em todo caso um Eu que pode ser base para um devir, mas também um impedimento e uma parada – não dá pra dizer de antemão. De “minha” parte, há uma abjeção em relação à psicologia que você atualiza, que é paradoxalmente a condição de nossos encontros, mas que também impede um devir-heitor em mim. E abjeto [3] é precisamente aquilo que está no limite do meu corpo – a lágrima, o cuspe, a bosta, o suor e o catarro que secreto mas não cesso de produzir.


O que pode nosso vínculo, nossa relação? Bobagem querer enquadrar o devir. É vão. “A diferença [devir] não pede tolerância, respeito ou boa-vontade. A diferença, desrespeitosamente,  simplesmente difere.”[4]. Os devires se impõem, a questão é mais o que fazemos com eles. Essa carta é já um devir-heitor em mim e se te envio, é menos como uma tentativa de sedução do que uma tentativa de produzir alguma coisa a partir dele. Sair um pouco do enquadre, ou devir a partir dele… o que você fará com ela? Diante dela, que é também diante de mim?


É bem verdade que nossa relação, pra mim, não está separada de “meu” projeto esquizoanalista. Que será tanto mais esquizo quanto mais longe forem levados os preceitos de que “o social é anterior ao familiar” e “antes do ser, há a política”. Porque é fundamentalmente de modo de vida que se trata… tanto meu projetinho, quanto nossas terapias.


Mundial e ao mesmo tempo “ao alcance da mão”, mas isso depende de conceitos ainda indeterminados que dêem consistência às questões políticas ao mesmo tempo ao que se passa na relação terapêutica. Substituindo, sem equivaler, “mecanismos de defesa”, vínculo e cognatos individualistas, neutros, familiaristas, coloniais… um deles é justamente o de implicação, que substitui a transferência. Digo substituindo sem equivaler, já que o capital reduz tudo “ao estado de merda” de modo que todas as abordagens psi se equalizam em seu efeito afeito a ele. “Todos os caminhos levam a Roma”, ditado do berço do colonizador. Mas é um projeto extremamente frágil, porque extremamente aberto ao erro, que é bem o devir. Muitas entradas possíveis para o erro.


Suponho que a verdadeira criação – de conceitos ou qualquer coisa, supõe um devir minoritário, que carece de um ser mas o ultrapassa. Lembro do que os musos disseram acerca do professor especialista do ser: “Talvez este rigoroso professor [Heidegger] fosse mais louco do que parecia. Ele se enganou de povo, de terra, de sangue. Pois a raça invocada pela arte ou a filosofia [esquizoanálise?] não é a que se pretende pura, mas uma  raça  oprimida,  bastarda,  inferior,  anárquica,  nômade,  irremediavelmente  menor  […] Artaud dizia: escrever para os analfabetos — falar para os afásicos, pensar para os acéfalos. Mas que significa “para”? Não é “com vistas a…”. Nem mesmo “em lugar de…”. É “diante”. É uma questão de devir. O pensador [o esquizoanalista] não é acéfalo, afásico ou analfabeto, mas se torna. Torna-se índio, não para de se tornar, talvez “para que” o índio, que é índio, se torne ele mesmo outra coisa e possa escapar a sua agonia.”[5]


Cordialmente, A.

27 de maio de 2020


Ps.: Posso devir-bruxo? Você sustenta devir-viado?


 

Notas

1.“[…] só os devires são secretos; o segredo tem um devir.” (MP 4, p. 72)

2. “Haverá sempre uma mulher, uma criança, um pássaro para perceber secretamente o segredo.” (id.)

3. Originalmente, de Julia Kristeva em "Poderes do Horror".

3. “Identidade e diferença: impertinências”, texto do Tomaz Tadeu, querido tradutor de Spinoza.

4. “O que é a filosofia?”, p. 131-132


Versão com notas modificadas do texto originalmente publicado em Caderno de Dobras.

 
 
 

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