top of page
Buscar

Criticar, Criticar, Criticar

  • Foto do escritor: Argus Setembrino
    Argus Setembrino
  • 18 de set. de 2020
  • 4 min de leitura

Divisar as críticas entre construtiva e destrutiva é uma coisa que orienta já o senso comum. Talvez tenha sido Paulo Freire quem propôs esses dois tipos: a crítica construtiva seria aquela que vem acompanhada de uma proposta de solução. “Olha, isso aí tem esse e aquele problema, mas você poderia fazer assim...”. Tem mesmo algo de construtivo nesse gesto.

Dizque a diferença entre remédio e veneno é a dose. Talvez também se aplique a esse gesto crítico. Quando criticar é tão repetido, tão reiterado, tão fundamental que se torna um hábito, uma instituição. E quando estamos já institucionalizados e a crítica se torna uma disposição cognitiva, uma "atitude" - internalizada, por definição.

É uma virtude, a atitude crítica. A esse respeito, alguém certa vez disse a crítica não existe senão em relação a algo que não ela mesma; se põe limites ou outras direções àquilo que critica, não é sem uma função subordinada e uma espécie de “parceria adversária” com os domínios criticados; a crítica é um meio para uma verdade que ela própria não saberá nem será. Quando imagino qualquer coisa que critico, vejo que é assim mesmo... se critico, por exemplo, a postura ou didática de uma professora minha, ela pode ignorar, rever sua maneira de dar aula, mas ainda é ela dando aula e me ensinando. Nesse caso, ajudo a "construir" uma aula mais afeita a mim, que inclua certos aspectos, que vá em outra direção... mas ainda será uma aula, ainda estarei como aluno. Dizque o que não mata, engorda.

Seja construtiva ou destrutiva, a crítica é sempre (ou quase sempre) uma reação a uma ação de alguém ou alguma coisa. Por isso é subordinada. Ninguém critica o que não está te afetando, te interferindo, te comandando.

Nesse sentido toda crítica tem um pouco de autocrítica, na medida em que aquilo que se critica faz parte do sua vida, senão de si mesmo - se é que são coisas diferentes. Não no sentido de uma projeção, mas em qualquer sentido em que um si mesmo não seja um indivíduo fechadinho e bunitinho...

Há quem diga que a melhor crítica é aquela que faz da coisa criticada um conceito. Vejo algo disto, por exemplo, em Milton Santos e Maria Laura Silveira quando propõem uma outra classificação das regiões brasileiras: "região concentrada", eles chamam o conjunto do que para o IBGE são as regiões sul e sudeste. Se a densidade tecnológica, as informações, as visibilidades são maiores nesta região a ponto de se tornarem dominantes em relação às demais, deram-lhes um nome condizente, numa proposta nova, fizeram disto um conceito ou algo parecido.

É o caso também de René Lourau, ao criticar uma "metástase" do uso do conceito por ele trabalhado - a (análise de) implicação -, deu um nome: sobreimplicação passou a ser a impossibilidade, a dificuldade e a confusão em relação à análise de implicação.

Não é uma completa ruptura, como seria por exemplo "virar o rosto e olhar em outra direção"; ou sair da sala, no caso da aula criticada em nosso exemplo anterior. Há ainda uma relação com a coisa criticada, mas menos subordinada. Ao menos não subjetivamente subordinada, embora maquinicamente, no cotidiano a subordinação ainda se imponha e tente entrar, fazer um conceito da coisa criticada é já uma mudança de "atitude" ou disposição diante dessa coisa. Crítica ativa? Quem falou desse tipo de crítica talvez se referia mais a uma crítica autística, já que também dizia que o conceito é conhecimento, mas do próprio conceito.

Mas em todo modo, nomear a coisa criticada, dar-lhe uma significação que não é a que ela própria dá - como é o caso da "região concentrada" e da "sobreimplicação", é já escapar de alguns riscos. Um deles é o de cair num chorare infinito. Já encontrei pessoas assim, que viam na crítica uma virtude mas nessa crítica subordinada: fazem da crítica (reativa) sua ética e sua morada; é uma ladainha sem fim, um choramingo hediondo... tenho impressão de que essas pessoas odiariam se suas críticas surtissem efeito e a coisa criticada mudasse mesmo, pois perderiam o sentido da própria vida delas.

Mas não ocorreria, porque qualquer elaboração que se ponha a criticar, o que ela pode nos oferecer é “soletrar o mundo sabendo que o perdemos”. Ela pouco pode nos qualificar a “ler” o mundo e, mais importante, “escrevê-lo”.

O leitor há de notar que esse texto poderia ser intitulado "crítica da crítica", e como qualquer crítica, pode ser destrutiva, construtiva, reativa, autística e por isso tudo, uma autocrítica. Também eu me vejo apaixonado por situações, entre elas as do chorare, e critico aquilo que não sou capaz de destruir. A ideia também não é invocar um Nietszche moralista e jogar a reatividade pra debaixo do tapete, como às vezes ocorre entre nitianos que confundem ética com etiqueta...

Procuro pensar a crítica - seja qual for - como devendo ser um lugar de passagem: necessário, mas sem demora. No plano das coisas materiais, a crítica ativa ou autística seria algo como buscar entre as coisas algo de diferente... Passar da crítica a outra coisa, portanto, porque se a crítica sempre tem relação com a coisa criticada, que essa relação seja cada vez mais dispensável. Penso isso sobretudo em relação às teorias sobre a sociedade, sobre os governos e governantes, mas qualquer coisa que tem a ver com o cotidiano e modo de vida.

Talvez toda crítica seja construtiva, qualquer que seja seu tipo ou classificação. É por isso que talvez a gente deva guardá-la a quem mereça... desconfiar de quem não te critica, se afastar de amizades acríticas. Criticar os amigos quando for bom tempo, mas lembrando também que "só fortalece aquilo que não mata". Criticar pode ser bem um ato generoso...














Michel Foucault, em entrevista publicada com o título “O que é a crítica?”, foi quem disse dessa subordinação da atitude crítica



Desenhos de Haruka-K, no DenviantArt

Originalmente publicado em Caderno de Dobras

 
 
 

Posts recentes

Ver tudo
Riobaldo, o jubiloso.

A narrativa de Riobaldo oscila todo o tempo entre extremos. Entre a alegria e a tristeza.

 
 
 

コメント


Post: Blog2_Post

Subscribe Form

Thanks for submitting!

  • Facebook
  • Twitter

©2020 por Psicologia da Diferença. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page