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Riobaldo, o jubiloso.

  • Foto do escritor: Ondina Pena
    Ondina Pena
  • 27 de fev. de 2021
  • 9 min de leitura

Espero conseguir aqui relacionar a “travessia” de Riobaldo com a perspectiva nietzschiana da plenitude e do júbilo com a existência, inspirando-me na interpretação trágica que lhe dá Clément Rosset.

A narrativa de Riobaldo oscila todo o tempo entre extremos. Entre a alegria e a tristeza, em afirmações tais como: “no estado do viver, as coisas vão enqueridas com muita astúcia: um dia é todo para a esperança, o seguinte para a desconsolação” (Rosa, 1986, p. 383). Também entre o desejo de que as coisas se fixem e se tornem previsíveis, expresso no “medo da confusão das coisas, no mover desses futuros, que tudo é desordem” (Rosa, 1986, p.368) e a admiração por sua mobilidade e imprevisibilidade, que se pode ler em inúmeras passagens, mas que se resume bem nessa fala: “Vida, é noção que a gente completa assim, mas só por lei duma idéia falsa. Cada dia é um dia” (Rosa, 1986, p.372).

Riobaldo oscila também entre o esgotamento das suas forças, quando diz: “o que eu queria mesmo, real, era estar sarado de alguma demorada doença, comendo aos poucos o meu caldo com angu...” (Rosa, 1986, p. 374) e a exuberância do seu desejo, comprovada na produção mesma da narrativa e na alegria de lembrar, pois seu interesse pela evocação das lembranças e pelo esforço de torná-las exatas é, por si só, o reconhecimento e a aprovação da existência, qualquer que seja ela: “E tudo conto, como está dito. Não gosto de me esquecer de coisa nenhuma. Esquecer, para mim, é quase igual a perder dinheiro” (Rosa, 1986, p.380).

Nesse vai e vem, o que se revela como o segredo da vida, a sabedoria que ele vai atingindo “no meio do redemoinho”, no mesmo instante em que “o real se dispõe” (Rosa, 1986, p.60), está justamente em aceitar a existência tal como ela é, com suas misérias, tragédias, injustiças e crimes. Essa é a perspectiva nietzschiana da plenitude, segundo a qual há um caráter jubiloso do já, do agora, da existência em geral que, por não ter razão de ser, não ter explicação racional alguma, também não seria ameaçada por nenhuma objeção.

Não se trata de pensar em uma aceitação de tipo conformista, em uma resignação por falta de coisa melhor, que se vincularia a um “apesar de...”, já que esse pensamento suporia uma outra vida idealizada, que forneceria argumentos para uma alegria imperecível, eterna. Trata-se de pensar em uma afirmação da vida tirada do fundo do seu caráter efêmero, absurdo e imprevisível. Diz Riobaldo:


“O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza!”. (Rosa, 1986 p. 297)

E mais adiante, já às voltas com o encontro que pretende ter com o diabo, exclama: “Ah, esta vida, às não-vezes, é terrível bonita, horrorosamente, esta vida é grande” (Rosa, 1986, p.394), frases nas quais realiza a sua afirmação da existência, o paradoxo em que consiste a alegria, uma vez que não consegue dar a ela nenhuma justificativa racional, pois ela basta a si mesma e não depende de nenhuma contribuição, de nenhuma condição exterior. Tampouco seu desejo encontra justificativa racional, quando se pergunta: “E, o que era que eu queria? Acho que eu não queria mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era – ficar sendo!” (Rosa, 1986, p. 392).

O alcance dessa condição, o fortalecimento da alegria e do júbilo de Riobaldo, que aumenta e diminui durante toda a narrativa, vai atingir o ápice a partir do “pacto” com o diabo. O pacto expressa exatamente essa disposição para aceitar o desafio do que há de mais absurdo e de trágico na existência. Não com a pretensão de lhe colocar fim, nem de negá-lo ou virar-lhe as costas, mas por estar convencido de que sua força vital e alegria de viver consistem nesse acordo, embora não tenha justificativa racional para esse convencimento. Ele simplesmente o intui, o sente. E expressa essa idéia com as seguintes palavras quase definitivas, com as quais se entrega ao pacto e, portanto, a um novo plano para sua existência: “Mas eu tirei de dentro do meu tremor as espantosas palavras. Eu fosse um homem novo em folha. Eu não queria escutar meus dentes” (Rosa, 1986, p. 391).

Entendo que a busca de Riobaldo seria compreendida de uma forma muito parcial e equivocada se teorizada simplesmente como um movimento assentado sobre uma falta essencial fundante, como seria mais evidente supor, de acordo com a teoria do desejo como falta, tradição que vai de Platão a Lacan. Parece-me que essa teoria poderia ser simplificada da seguinte forma, tendo como base O Banquete, de Platão, e a leitura que dele faz Lacan no seu seminário sobre a transferência.

Platão coloca aí em discussão a natureza do desejo humano, especialmente com o relato do mito do nascimento de Eros, gerado da conjunção de Pênia – falta, miséria, aporia e Poros – riqueza, plenitude, expediente.

De acordo com esse mito, o amor teria, na sua constituição, a marca da falta, que provoca naquele que está sob o seu domínio uma aspiração para o divino, para o belo. É enquanto encarnação da falta que Pênia se deixa atrair por Poros, que é a própria plenitude. Nessa concepção, a falta é o que nos leva a seguir em frente em uma busca incessante, incitando-nos à superação de nós mesmos, de nossos limites, em busca daquilo que julgamos não ter e cuja posse eterna nos traria prazer, ou seja, o belo.

Na interpretação de Lacan, a atividade própria de Eros é a procriação na beleza, porque na procriação o homem se eterniza. Temos aí a idéia de imortalidade, que é sempre o tema quando se trata da relação entre os humanos e os deuses. Eros, enquanto intermediário entre esses seres bem-aventurados e imortais e esses outros, infelizes e efêmeros, traz à tona a dialética do ter e do ser: ao perseguir o belo, em última instância, o ter se transforma em ser, ser imortal.

Nesse percurso, a beleza, de atributo de um objeto (corpo belo, alma bela) transforma-se no próprio alvo. É dessa forma que a teoria da falta compreende o desejo como metonímico, na medida que ele desliza de uma coisa bela a outra, visando sempre algo que está além de todas. Assim, o desejante vai sendo levado a um inalcançável amado através de todos os objetos amáveis, belos, em um processo que nada mais é do que o seu próprio devir, a sua constituição como sujeito, enquanto ser de falta. Segundo essa teoria, o objeto presente aqui e agora só tem interesse na medida em que remete para um outro, que, por sua vez, é visado enquanto permanece fora do alcance. As conseqüências desse raciocínio, no que concerne à alegria, é que esta vai se constituir sempre como uma escapatória à existência efêmera, em direção a um ser eterno idealizado.

Há inúmeras passagens em Grande Sertão: Veredas que se constituem em reflexões que trazem à tona essa problemática e mostram como esse tipo de funcionamento psíquico se constitui como um engodo, que acaba por nos afastar da vida. Tenho em mente aqui aquela passagem em que Riobaldo usa a metáfora da travessia de um rio: projeta-se alcançar a outra margem (que poderia figurar, na teoria da falta, como o objeto de desejo perdido que não será recuperado porque é sempre outro ponto da margem que se alcança) e esquece-se de prestar atenção no movimento atual, onde se concentra a vida na sua plenitude, com todas as suas possibilidades e, portanto, levando em conta o caráter imprevisível do seu movimento.

O que eu busco afirmar aqui é que o movimento de Riobaldo se confunde com seu próprio desejo de fazer falar aquilo que normalmente se pensa em silêncio, por ser trágico: “o senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais” (Rosa, 1986, 394). Riobaldo repele o silêncio e dá ao trágico acesso à fala. Não porque essa fala modifique a natureza de seus problemas. Mas por intuir que a expressão daquilo de que já sabe em silêncio, isto é, a expressão do trágico, embora não se constitua em um acréscimo de saber, torna-o disponível, já que ele sabe que “não podendo entender a razão da vida, é só assim que se pode ser vero bom jagunço” (Rosa, 1986, p. 533), demonstrando sua capacidade de renunciar à exigência de que a existência dê sinal de alguma razão, para ser aprovada. A aprovação da vida de jagunço, ao contrário, deve-se aqui exatamente à sua imprevisibilidade: “Daquilo tudo eu gostei, gostava cada dia mais. Fui aprendendo a achar graça no dessossego” (Rosa, 1986, p. 231).

Esse sentido do desejo, que não é fundado em nenhuma falta, mas é a própria existência no seu movimento de expansão, baseia-se no conceito espinosano de conatus. Constituindo-se como a própria essência do humano, o conatus é o seu esforço para perseverar na existência, o seu poder de se realizar plenamente contra os inúmeros obstáculos a essa existência. O conatus, quando se trata do humano, é desejo.

Se o humano é essencialmente desejo, a falta não é, como em Platão, fundante. Ao contrário, o desejo assim concebido é positividade em função da qual o humano persevera em seu ser. Se em Platão o desejo tende a alguma coisa considerada bela, em Espinosa, a coisa só se torna bela porque o desejo tende para ela. Ou seja, o desejo, ao invés de ser produzido pela falta, é produtor, é primeiro, é a própria existência.

Como pensar o desejo, o amor de Riobaldo por Diadorim? Espinosa faz uma associação entre amor e alegria ao dizer, na sua Ética: “o amor não é senão a alegria acompanhada da idéia de uma causa exterior” (Espinosa, 1979, p. 186). O outro, o objeto do amor, nesse sentido, não é causa desse amor por possuir algo que o desejante imaginaria ser aquilo de que necessita, como seria evidente supor pela teoria da falta. O outro, i,é, Diadorim, tragicamente, seria considerado a consubstanciação da alegria de Riobaldo, que assim o expressa: “Assim foi que, nesse arraiar de instantes, eu tornei a me exaltar de Diadorim, com esta alegria, que de amor achei. Alforria é isso” (Rosa, 1986, p. 346).

A alforria, a liberdade de Riobaldo, está em, súbito, descobrir que “Reinaldo era Diadorim – mas Diadorim era um sentimento meu” (Rosa, 1986, p. 291). O afeto chamado Diadorim está presente principalmente nos seus momentos de júbilo com irrupções inesperadas, em que Riobaldo é arrancado de qualquer tendência a se familiarizar com o que vive. Esses momentos de familiaridade trazem o risco de tédio, que é a cada vez exorcizado pelo estranhamento, pelo absurdo, que lhe restitui a beleza: “Quando acordei, não cri: tudo o que é bonito é absurdo” (Rosa, 1986, p. 269). Nesses momentos, o afeto chamado Diadorim se fortalece.

Não é, pois, Diadorim, a causa da alegria de Riobaldo, ainda que tenha havido momentos precisos e particulares da relação Riobaldo/Reinaldo que tenham sido motivo de satisfação e tenham provocado alegria. Mas a alegria de Riobaldo sempre excede essas felizes circunstâncias que a provocaram, pois, para ele, “só aquele sol, a assaz claridade, o mundo limpava que nem um tremer d’água. Sertão foi feito é para ser sempre assim: alegrias!” (Rosa, l986, p. 469).

Tal declaração expressa uma “alegria geral que consiste em viver”, simplesmente por lembrar “que o mundo existe e se faz parte dele” (Rosset, 2000, p. 14). Trata-se, então, de pensar a alegria à maneira de Espinosa, como acúmulo de amor, indiferente a todas as causas que o provocam, ainda que, por vezes, torne-se manifesto por ocasião de uma satisfação particular. Assim, com Zé Bebelo à direita e Diadorim à esquerda, Riobaldo mantinha a coragem de continuar a perguntar: “mas, eu, o que é que eu era? Eu ainda não era ainda” (Rosa, l986, p. 365). No entanto, “se ia, se ia”. “Viajar! – mas de outras maneiras: transportar o sim desses horizontes!...” (Rosa, l986, p. 365)

Transportar, principalmente, o princípio básico do trágico que consiste exatamente no reconhecimento da irracionalidade da existência, justamente por ser anterior a todo pensamento e fazer do imprevisível a fonte mesma do júbilo, tal como se expressa Riobaldo do início ao fim de sua narrativa: “Viver – não é? – é muito perigoso. Por que ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo. O sertão me produz, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca...” (Rosa, 1986, p.546)





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PLATÃO. Diálogos (O Banquete). 2ª edição, São Paulo : Abril Cultural, 1979 (Os Pensadores). Páginas 1-53.


ESPINOSA, B. Ética. In: Espinosa. 2ª edição, São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Os pensadores). Páginas 71-223.


LACAN, Jacques. O Seminário, livro 8: A Transferência. 1ª edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. Primeiro Capítulo: A mola do amor: um comentário sobre o Banquete de Platão, páginas 27-165.


NIETZSCHE, Friedrich. Obras Incompletas. 3ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Os Pensadores)


ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas, 20ª edição, Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1986. 567 páginas.


ROSSET, Clément. Lógica do Pior. 1ª edição. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989. 198 páginas.


............................... Alegria, A Força Maior. 1ª edição. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. 102 páginas

 
 
 

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