O que pode uma narrativa?
- psicologiadadifere
- 27 de mai. de 2020
- 4 min de leitura
Gabriel Gonçalves
Denyse Furuhashi
____O que seria um texto, necessariamente? Seria um depósito de conteúdo ou um modo de narrar? E se estamos falando de um modo de narrar, para além dele, o que necessariamente estou considerando na produção deste? Seu formato? Seu modo naquilo que ele possui de mais aberto ou de mais fechado? Ou, ainda e ainda mais, estou falando, conjuntamente, de um modo de afetar? Do modo como esse texto afeta? Por exemplo, quando coloco uma série de dúvidas no começo de um texto, de uma narrativa, o que isso exprime, o que isso expressa? A quais afecções te convoca?
____No texto-produto, as perguntas tal como se estruturaram podem cair no ciclo vicioso das perguntas retóricas ou gerar a expectativa da construção de uma resposta plausível de convencimento. Se trata-se disso, é mera colonização dos afetos do outro. Diminuição de potência alheia. Tristeza massificada. As duas opções são marcadas pelos caminhos redundantes do exercício da intelectualização, apenas pela via segregadora do racionalismo. Surge a pergunta: O que os textos e os modos de narrar possuem de redundante? Uma vez que os excessos (nesse caso, os excessos de perguntas) podem aparecer retidos até mesmo em uma única frase, camuflados de intensidade, mas que por fim se limitam em não dizer nada de novo.
____Contudo, aqui estamos fazendo as linhas da nossa escrita, deparando-nos com nossas perguntas por vezes retóricas e por vezes no anseio por respostas imediatas. É novo de novo? Uma pergunta novamente. É que na escrita-criação permitimos fluir com os nossos processos e nos conduzir em nossos encontros. Damos longos passos nos caminhos conhecidos, mas não nos detemos. Não paramos no “re-conhecimento”. É no estranhamento, na marca da possibilidade de uma (múltiplas) emergência(s) daquilo que se faz novo, do que ainda não foi visto, por vir sentido, que se faz a diferença em sua infinita multiplicidade. A diferença não em oposição a redundância, mas diferença: aquilo que se cria e escapa à própria repetição.
____E como viver um texto como uma expressão intensiva, aquela que produz a Diferença? “O singular se expressa por ele mesmo”: essa é uma entrada. Não há texto tal qual outro, ou um texto analógico a outro. A analogia ou a metáfora, como bem dito em outra produção singular, é uma estagnação no Mesmo, é uma afirmação caída a Semelhança. É trazer o diferente para o redundante. Um texto é potente de se expressar por ele mesmo. Ele se acopla a várias linhas, a vários corpos, a vários modos irruptivos minimamente intensivos nos quais eclodem uma forma de fazer. Fazer-escrita, fazer-texto, e além: do outro lado, em outro instante ou acontecimento, o fazer-leitura, expressando um outro modo, acoplado a outro, e a outro, e a outro. A criação se faz necessariamente nos encontros.
____Não estamos imunes. Abrir-se ao novo necessita de uma compostura implicativa. Trata-se de não intelectualizar práticas, saberes, sobre uma diferença transcendente: a meta, a finalidade… Movimento que apenas desembocaria em uma forma de fazer-saber. Seria como usual lugar de nutrir a transferência, avaliar a contratransferência, se colocar no lugar de suposto saber. A diferença, como fator de impessoalidade e ruptura, transveste-se de implicação. Trata-se mesmo de se colocar no lugar do possível, para gerar seu estranhamento. Trata-se de entender a serpente de Amarante que está dentro de nós.
____Todos nós conhecemos a redundância, conhecemos as perguntas retóricas, e em alguns casos, conhecemos o lugar do fazer-saber. Implicar-se propõe saber-fazer. Acoplar-se ao coletivo. Retirar-se do mesmo lugar conhecido. Propor-se a diferença junto ao coletivo, na prática, na ruptura.
____Uma prática que não provoca estranhamento, alocada confortavelmente em uma direção, há de colonização, de iluminismo, da proposta de algo que está pronto. A escrita-direção é verticalizada frente a escrita-criação, que cria uma disjunção, transverte-se. Rompe o eixo cartesiano. Não se trata mais de colocar uma escrita frente a outra. Toda oposição está no lugar da escrita-direção, pois trata-se sempre de eixo x e eixo y, do maior para o menor, do mesmo para o mesmo.
____O transversal rompe, qualifica-se, cria estranhamento, subverte sem precisar inverter. Subverter é um rodopio para um direção da qual não se sabe para onde vai. Não há certezas na escrita-criação. Não há propósitos. Há crítica, filosofia pelo martelo, com todas as ressalvas a metafísica nietzschiana. Não critica-se para afirmar algo, porque possivelmente e positivamente não se sabe o que se afirma. Estará lá, virtualmente, em algum lugar. Oculto, sensualizado. A espreita. É uma serpente contra a serpente. Serpente já dada? que irá engolir a si mesma, trocar de pele. Não se sabe o que ela irá virar. Virtualidade em um texto que se permite. Abre. Não quer se valer de respostas prontas.
____Nosso desejo está em caminhar no estranhamento de nossos encontros e compor os traços dessas linhas e sentir os fluxos dos nossos afetos. Não há certezas na escrita-criação, há posicionamentos. Permitimo-nos nos conduzir por aqui. Agora sem incorrer ao monólogo das perguntas retóricas versus respostas prontas, seria irônico terminar esse texto com perguntas? Como terminar esse texto? Como se termina uma criação?

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